Alimentar-se é um ato tão natural que pouco refletimos sobre ele. O que, de fato, significa nutrir-se? Envolve somente uma questão de sobrevivência ou ultrapassa os meandros da necessidade física e alcança o terreno simbólico, tão próprio do ser humano? Qual o lugar que a culinária ocupa em nossas vidas?
Somos a única espécie capaz de modificar o estado bruto dos alimentos. Cozinhamos, assamos, defumamos, temperamos e decoramos nossas comidas. Fazemos, de nossas refeições, momentos de encontro e de afeto. Celebramos a vida em torno da mesa, construímos relações e memórias permeadas pelos sabores, pelas cores e pelos odores dos alimentos. Fazemos da comida uma pujante manifestação do que somos e, por isso, assim como a música, a literatura ou a pintura, a culinária é, também, elemento central da constituição cultural de um povo.
A comida nos conta quem são as mãos que cozinham, de onde vêm, quais são as farturas de sua terra. É um canal de comunicação e resistência, que guarda memórias, sabedorias, lendas e mitos de uma comunidade. Alimentar-se é, sobretudo, um ritual, que tem início com o plantio, estende-se à colheita e à escolha dos ingredientes, passa pelos processos de feitura do alimento e consuma-se com a degustação, geralmente celebrada sob aspecto sagrado, com festas, rezas e agradecimentos.
Em tempos de industrializados, pouco se pensa sobre o processo ritualístico da comida. Alimentar-se tornou-se um ato restrito à consumação, por vezes solitário, distante do aspecto sagrado que caracteriza a comida quando concebida como patrimônio cultural. Há, porém, aqueles que buscam preservar o aspecto cultural, coletivo e sagrado da alimentação, fazendo com que tais características sobrevivam aos interesses da indústria de enlatados e processados.
Alessandra Fabbri, no livro ‘As linguagens da comida’, faz um alerta importante. Ela, que trabalha no Serviço de Saúde Regional do Município de Reggio Emilia (Itália), vê relação direta entre hábitos alimentares e práticas educativas e destaca a importância de educar as novas gerações para uma alimentação saudável e consciente. Só assim, acredita, crianças e jovens serão capazes de se posicionar de maneira crítica em relação aos novos conformismos alimentares ligados a sugestões comerciais, publicitárias e televisivas.
De fato, podemos identificar uma relação estreita entre alimentação e educação. Isto porque a educação, ao olhar para a integralidade do sujeito olha, necessariamente, aos hábitos alimentares que o constituem. No Brasil o cenário é urgente, já que, segundo o Ministério da Saúde, 33% das crianças são obesas, com grandes chances de viverem menos do que seus pais – e com menor qualidade, como pontua a Organização Mundial de Saúde (OMS).
A reversão deste quadro passa por uma reeducação alimentar e as escolas, as famílias e os órgãos públicos devem trabalhar juntos para construir hábitos alimentares saudáveis desde a mais tenra idade. A boa alimentação, inclusive, impacta diretamente na medicalização da infância já que, ao oferecer os nutrientes necessários às crianças, estas terão maiores chances de desenvolver uma imunidade consistente, diminuindo assim a prescrição de remédios.
A cozinha como um laboratório de sensações
Já existem diversas iniciativas que se preocupam com a educação alimentar das novas gerações. Na Itália, a cidade de Reggio Emilia é um exemplo que inspira. Referência mundial nos estudos sobre educação infantil, as escolas municipais da região organizam-se sob os estudos de Loris Malaguzzi, professor italiano que acreditava nas “cem linguagens da criança”. Dizia ele: “A criança tem cem linguagens (e depois, cem, cem, cem), mas roubaram-lhe noventa e nove. A escola e a cultura separam-lhe a cabeça do corpo”. Foi este olhar de Malaguzzi que deu origem a uma abordagem educativa que pensa a escola como um grande ateliê, onde todos os espaços são laboratórios, que convidam a criança a acessar as suas ‘cem linguagens’ e ampliam assim as possibilidades de aprendizagem, de expressão e de interação com o mundo.
Nesta concepção, a cozinha da escola surge como um espaço potente de experiências, em que as crianças circulam e relacionam-se com os processos ritualísticos da alimentação, podendo conhecer e se encantar pela comida, seus ciclos, suas cores, seus odores. Podem, enfim, descobrir a beleza que habita as práticas da alimentação e dar mais valor à “comida de verdade”, em detrimento dos enlatados ou fast-food.
Ao abrir caminhos para que as crianças entrem em contato com os processos que envolvem a alimentação, temos maiores chances de construir uma educação alimentar exitosa já que, ao conhecer tais processos permitimos que elas sejam tocadas e modificadas por eles. Não podemos esquecer, porém, que a criança já possui dentro de si interesse pela natureza e suas cores, texturas e gostos. Basta observar um bebê durante o período de introdução alimentar: ele está inteiramente aberto aos diferentes sabores, anseia por manusear a matéria-prima, por sentir o cheiro, levar à boca e testar as inúmeras possibilidades que cada alimento oferece. Ou, ainda, se observarmos as brincadeiras da infância: tão logo começa a simbolizar, a criança coloca-se a brincar de comidinha, a decorar os pratos com flores e folhas e a arrumar a mesa para servir o que preparou.
Frente à essas manifestações tão enraizadas no ser humano, será que damos às nossas cozinhas – seja em casa ou na escola – o seu devido e sagrado lugar? Será que estamos deixando as crianças de fora deste espaço tão rico em costumes, hábitos e saberes ancestrais?
A comida possui uma estética própria, que dialoga – assim como outros elementos da cultura – com a alma das pessoas. Comer está para além de nutrir o corpo físico, é um ritual que, se cuidado e trabalhado nas escolas, pode abrir portas que conectam a criança com os costumes e histórias de sua comunidade local – e, ainda, com as histórias de uma comunidade global, já que hoje nossos modelos alimentares são prioritariamente interculturais e por meio da alimentação podemos acessar a identidade cultural de povos que vivem distantes de nós. Por tudo isso a alimentação é um campo que merece ser explorado pelos educadores e educadoras que estão dentro das escolas.
Alimentar-se na escola
“O cuidado pelas degustações, pela boa e bonita composição do prato, pela estética da preparação da mesa, o prazer de poder compartilhar o almoço com os amigos, a oportunidade de conhecer a cozinha como laboratório polissensorial são estratégias importantes para criar uma valorização do grupo e um acolhimento com relação a todos”. Maddalena Tedeschi, Pedagogista das Escolas e creches da Infância Instituição do Município de Reggio Emilia.
Faz parte da realidade de muitas crianças brasileiras almoçar, lanchar e jantar nas escolas. Ou, ao menos, fazer uma destas refeições no ambiente escolar. A experiência é bastante rica, pois possibilita à criança um novo contexto relacional de alimentação, diferente daquele que ocorre no espaço familiar. Na escola, há o aspecto comunitário, de troca, de compartilhamento com os pares, de abertura a novos sabores e novos costumes. Para a educadora Vilma Silva, gestora do Espaço Travessias, o momento da refeição integra o currículo da escola e deve, por isso, expandir-se para além do prato, adentrando, por exemplo, discussões nos grupos e agregando novos saberes às crianças e jovens: “Não basta nutrir o corpo, mas a comida deve ser um fio condutor de alimento à alma”, afirma.
Visitar a cozinha da escola, relacionar-se com a cozinheira, conhecer os modos de preparo do alimento e participar destes processos, conhecer a procedência da comida, plantar, colher, aprontar a mesa, servir-se, conversar e trocar durante a refeição: tudo isso pode e deve ser explorado, pois são experiências com conteúdo vivo, que dialogam com uma atividade cotidiana das crianças e por isso são repletas de sentido.
Pensando nisso o Travessias Educacional recebeu, em julho deste ano, a equipe da Escola Primeira Estação, de Jaguariúna (SP), para um encontro que trouxe luz à relação entre educação e alimentação. “O gosto do alimento está para além de seu sabor e de seu perfume. Há um contexto maior que envolve a comida e que merece ser trabalhado nas escolas”, afirma Vilma, responsável pela condução do encontro.
A Escola Primeira Estação oferece refeições diárias aos seus alunos, que têm de 4 meses a 6 anos. Mônica, coordenadora pedagógica da escola, afirma que sempre trabalharam em parceria com uma nutricionista para garantir a oferta de alimentos frescos, saudáveis e de qualidade aos alunos e às alunas: “A cozinha é um espaço muito importante dentro da nossa escola e prezamos por uma alimentação saudável. Mas, ao tentar facilitar o andamento das refeições, entregávamos os pratos prontos, as frutas cortadas e os copos cheios às crianças. Sem querer, inibíamos a autonomia e as experiências delas”.
Depois do encontro com o Travessias, o qual faz parte de uma consultoria mais ampla, o olhar para o momento das refeições parece ter incorporado transformações importantes.
O encontro e suas ressonâncias
“Percebemos o quanto é importante para as crianças sentir os cheiros, as texturas, os gostos dos alimentos. Às vezes pensamos que dar o alimento pronto é o suficiente e com isso a criança deixa de vivenciar, explorar e aprender muitas coisas” Mônica, coordenadora pedagógica da Escola Primeira Estação, Jaguariuna (SP)
Participaram do encontro educadores e educadoras da escola, membros da gestão e coordenação e a equipe responsável pela cozinha. Explorou-se ali as diversas linguagens da comida, que estão conectadas a experiências de prazer, comunicação, identidade, memórias e emoções. A equipe da escola foi convidada a trabalhar os alimentos a partir de um olhar estético, tomando assim consciência das diversas dimensões que envolvem o ato de alimentar-se: “Foi uma experiência de encantamento e resgate do que estava adormecido em nós. No encontro, tivemos a possibilidade de visualizar os alimentos, suas texturas, cores e sabores. Tive a possibilidade de resgatar o prazer de olhar um prato colorido. Pude, assim, entender a importância da comida no processo de aprendizagem das crianças”, assegura Mônica, e destaca que o momento das refeições já sofreu mudanças focadas em enriquecer as vivências das crianças: “Trocamos os materiais de plástico por porcelana, vidro, metal. Também passamos a servir as refeições em travessas maiores e as crianças que montam seus pratos, assim colocam o quanto querem e o que querem comer. Também estamos servindo as frutas inteiras e eles descascam, picam, cortam. Eles têm nos surpreendido!”, afirma a coordenadora, pontuando que este é apenas o início de uma transformação maior que desejam fazer.
Michele, gestora da Escola, também destaca o despertar de um novo olhar: “A nossa visão sempre foi para o alimento saudável, que nutria e nada mais. Após as experiências vivenciadas com o Travessias, a estética do alimento e a autonomia das crianças passaram a ter tanta importância quanto a nutrição exclusiva do corpo”. Para ela, a dimensão educativa da alimentação relaciona-se à uma educação dos sentidos: “O momento social da alimentação é muito rico, percebemos o quanto as crianças gostam de manusear o alimento, sentir seu cheiro, o quanto gostam da experimentação”.
Cleide e Dona Lurdes são as responsáveis pela cozinha da escola. Para elas, o encontro com o Travessias foi uma vivência cheia de cores e novas possibilidades: “Foi uma experiência muito boa para nós, que estamos todos os dias na cozinha, preparando as refeições para as crianças”, afirmam. Junto com a equipe de professores e professoras, elas construíram pratos com os alimentos disponibilizados na formação e garantiram que, na rotina da escola, cozinham com muito carinho: “É muito bom trabalhar com os alimentos e saber que as crianças se alimentam bem e são felizes. Muitas pedem nossas receitas e levam para fazer em casa. Isso é gratificante”, comentam as cozinheiras.
Mônica defende que alimentar-se é um ato de amor e afeto e afirma que reunir-se ao redor de uma mesa tem aspecto sagrado: “Para mim, é sagrado reunir a família para comer junto. Ensinei isso aos meus filhos e, como educadora, fiquei surpresa com o tamanho da ligação entre alimentação e educação. É um aprendizado que vai muito além das disciplinas como matemática ou português, pois entra no campo da socialização. Estou encantada com o que tenho aprendido e vivenciado e com tudo o que as crianças têm aprendido nos momentos das refeições”.
Ainda como ressonância do encontro, as crianças da Escola Primeira Estação puderam vivenciar momentos de encantamento ao descobrirem os alimentos a partir de novas perspectivas: “Apresentamos os alimentos para eles a partir das cores, assim como ocorreu na nossa vivência no Travessias! O prazer e encantamento pela comida é imediato”, assegura Michele. A equipe de educadores também realizou com as crianças atividades de observação de alimentos. Todos concentraram-se em olhar – com olhos de ver – um maracujá e, na sequência, desenharam o que viram. A riqueza de detalhes dos desenhos indica o encanto das crianças pelas miudezas dos alimentos. São atividades desta natureza, a princípio simples – mas potentes em profundidade – que iniciam as novas gerações numa nova relação com o ritual da alimentação.
Para Vilma Silva, o balanço do encontro foi positivo e as sementes plantadas seguem germinando: “Ao resgatar essas experiências e vivências com os adultos, eles têm a possibilidade de revisitar suas práticas com as crianças. Sentir no corpo é a forma mais poderosa de repensar nossas ações”, garante a educadora. Para ela, a escola pode e deve ser um espaço de relações vivas e intensas. “A comida dá essa possibilidade de contato com a vivacidade da natureza, seus ciclos e processos. É, de fato, uma porta para a construção de novas sensibilidades”, garante.
Vale lembrar, ainda, que os hábitos alimentares que cultivamos quando pequenos reverberam no decorrer de toda a nossa vida, por isso, cuidar da alimentação na infância é garantir um futuro mais responsável e saudável em relação à alimentação. Podemos, ao despertar nas crianças o encantamento e o prazer pelos alimentos, reverter a crise alimentícia e o cenário de obesidade infantil que atinge não apenas o Brasil, mas o mundo.
[Fotos] Equipe da Escola Primeira Estação (Jaguariúna, SP) durante a formação no Espaço Travessias e a repercussão do encontro nas práticas educativas da Escola. Para saber mais sobre o trabalho de consultoria oferecido pelo Travessias, clique aqui.
>> Para saber mais sobre o tema
MEIRELLES, Renata. Cozinhando no quintal. São Paulo: Terceiro Nome, 2014.
RENNER, Estela. Muito Além do Peso. Brasil: Maria Farinha Filmes, 2012. Documentário (84 min).
TEDESCHI, M.; CAVALLINI, I. As linguagens da comida: receitas, experiências e pensamentos. Trad. Thais Helena Bonini. São Paulo: Phorte, 2015.
Por Carolina Prestes
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